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Lá no Arpoador, quando o sol se despede em laranja melancólico e os pescadores voltam com o que o mar ofereceu — ou não às vezes ouve-se uma canção estrangeira escapando de um fone esquecido, como quem pede licença para entrar no silêncio dourado do entardecer.
Outro dia era Shallow, com Lady Gaga e Bradley Cooper, estourando os graves no celular de um rapaz sentado na pedra, com cara de quem tinha mais dúvidas do que planos.
Aquela voz rouca, carregada de alguma dor antiga, parecia conversar com o mar:
"Me diga uma coisa, garota, você está feliz neste mundo moderno? Ou você precisa de mais?"
E eu, que nem era a garota, me senti atravessado.
Vai ver todo mundo precisa de mais.
Ou de menos.
O mundo moderno — esse bicho apressado que exige produtividade até dos domingos — não combina com o ritmo da alma.
No Tao Te Ching, Laozi sussurra:
"A natureza não se apressa, e ainda assim tudo se realiza."
Mas a gente corre, se atropela, tenta preencher o vazio com barulho, imagem, qualquer coisa que brilhe. E mesmo assim, no meio do caos, ainda ansiamos por mudança.
Mas a mudança nem sempre é externa.
Muitas vezes, é só o desejo de viver de um jeito que faça sentido — e não sucesso.
O que Gaga canta é quase um koan zen, desses que não se resolve com lógica, mas com entrega: mergulhar fundo e não voltar à superfície.
Romper o espelho.
Abandonar o raso.
"Não é difícil manter toda essa energia hardcore?", pergunta ele.
O verso me bate como uma maré mais forte.
Quantas vezes fingimos invulnerabilidade, quando tudo o que o corpo pede é colo?
O Taoísmo ensina que a água é a mais suave e a mais forte das coisas — não enfrenta, contorna.
Não briga, dissolve. Talvez ser forte seja isso: deixar-se atravessar sem endurecer.
E então vem o refrão, rasgando o ar:
"Eu estou nas profundezas, me assista mergulhar, eu nunca vou para a terra firme."
Mergulhar... Quem nunca sentiu a urgência de afundar em si mesmo, de ir além das aparências, do automático, do personagem que a gente veste para sorrir enquanto por dentro chove?
We're far from the shallow now... Estamos longe do raso, canta ela.
E eu penso: talvez seja justamente isso que nos falta — a coragem de perder o chão para encontrar o centro. A superfície, com suas selfies editadas e felicidades performáticas, não protege ninguém.
O fundo sim. Lá, onde só a verdade alcança, ninguém nos fere.
Nietzsche dizia que "tornar-se quem se é" é a maior das tarefas. E Sartre completaria: "o homem está condenado a ser livre." Ou seja: não há manual, não há GPS. Só o silêncio das profundezas como bússola. No fim, Shallownão é só uma balada romântica.
É quase um tratado poético sobre autenticidade.
Gaga e Cooper, com sua entrega bruta, nos lembram que existe beleza em se despir da armadura, em dizer 'não sei", em viver sem certezas — mas com presença.
O mar já recuava, lambendo a areia com paciência.
O rapaz desligou o som e ficou ali, quieto, olhando o horizonte como quem também não queria voltar à terra firme.
Fiquei tentado a dizer algo.
Mas preferi o silêncio.
Talvez ele, como tantos de nós, estivesse enfim entendendo:
é longe do raso que mora a vida de verdade.
Idalo Spatz