- 23 de out.
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O sol, com sua costumeira preguiça, se despede devagarinho sobre o Atlântico, tingindo o horizonte em dourado, lilás e aquela promessa suave de noite carioca.
Eu na mureta do Arpoador, velejo entre ondas e pensamentos — umas quebram com força, outras só se entregam a areia, cúmplices das conversas dos amantes à beira-mar.
O mar? Dança ora intenso, ora invisível, nunca igual.
É quando o vento passa e parece trazer consigo um sussurro antigo, desses que brotam dos sábios silenciosos. Lao Tsé cochicha, com uma poesia simples: “Ser é a essência; Estar é a vida em movimento.” A brisa carrega esse ensinamento leve, mas a cabeça, sempre tão cheia de pressa urbana, resolve complicar o que a natureza faz parecer óbvio.
A diferença entre Ser e Estar, então, revela sua coreografia carioca: o Ser é leito profundo do rio, aquele que guarda potencial e silêncio; o Estar é superfície, feito de reflexos, de brilhos, de improvisos.
Nietzsche, talvez piscasse para esse jogo de espelhos dizendo: “A vida é um vir-a-ser; não há destino, só travessia.” Espinosa, sempre generoso, nos lembraria da unidade — somos múltiplos, mas de uma substância só. Kierkegaard lançaria uma dose de coragem: estar é mergulhar no instante, sem manual, sem garantia. E Lao Tsé contemplaria o mar, sem palavras, só Tao ondulando entre as pedras e a espuma.
Na areia, vejo uma criança construindo seu castelo. Minutos depois, uma onda surrupia seu reino. Ela, ao contrário dos adultos, não lamenta a obra desfeita — sorri e recomeça, sabedora intuitiva do Wu Wei: agir sem forçar, fluir suave, sem exaustão. Talvez esse seja nosso maior aprendizado com o mar, com as crianças e com o Tao: permitir que a vida seja, em vez de tentar domá-la.
A cidade — apressada e cheia de mapas, de tribos e identidades — confunde Ser com Estar. Queremos eternizar o instante, congelar um estado e transformar emoção em parede sólida.
Quando o “estar feliz” não se transforma em um “ser feliz”, sofremos como quem tenta reter o vento nas mãos.
O Ser muitas vezes se leva tão a sério que se perde na rigidez, colando-se ao que já passou ou ao que ainda vai chegar, construindo fortalezas que dificultam o caminhar.
O Estar, com rara consciência, cruza pontes entre o minuto que pulsa e o minuto que se dissolveu, aceitando o fluxo, sem lutar contra as marés.
Se Lao Tsé viesse sentar à mureta, tenho quase certeza — não daria receita, só abriria o convite: “Observe.” O mar canta, o surfista desliza, o vento bagunça os cabelos, e o agora, tímido, se mostra inteiro e perfeito. “A porta do Ser está no Estar,” talvez dissesse, com os olhos gentis.
Quando o sol encosta no horizonte e o Rio respira fundo, tudo que sobra é esse estar —
sereno, consciente, presente.
E nesse momento, estou.
Idalo Spatz
