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Padrão de rocha em camadas
  • há 56 minutos
  • 3 min de leitura

Lá no Arpoador, quando o sol se despede em laranja melancólico e os pescadores voltam com o que o mar ofereceu — ou não às vezes ouve-se uma canção estrangeira escapando de um fone esquecido, como quem pede licença para entrar no silêncio dourado do entardecer.


Outro dia era Shallow, com Lady Gaga e Bradley Cooper, estourando os graves no celular de um rapaz sentado na pedra, com cara de quem tinha mais dúvidas do que planos.


Aquela voz rouca, carregada de alguma dor antiga, parecia conversar com o mar:

"Me diga uma coisa, garota, você está feliz neste mundo moderno? Ou você precisa de mais?"

E eu, que nem era a garota, me senti atravessado.

Vai ver todo mundo precisa de mais.

Ou de menos.

O mundo moderno — esse bicho apressado que exige produtividade até dos domingos — não combina com o ritmo da alma.


No Tao Te Ching, Laozi sussurra:

"A natureza não se apressa, e ainda assim tudo se realiza."

Mas a gente corre, se atropela, tenta preencher o vazio com barulho, imagem, qualquer coisa que brilhe. E mesmo assim, no meio do caos, ainda ansiamos por mudança.

Mas a mudança nem sempre é externa.

Muitas vezes, é só o desejo de viver de um jeito que faça sentido — e não sucesso.


O que Gaga canta é quase um koan zen, desses que não se resolve com lógica, mas com entrega: mergulhar fundo e não voltar à superfície.

Romper o espelho.

Abandonar o raso.

"Não é difícil manter toda essa energia hardcore?", pergunta ele.


O verso me bate como uma maré mais forte.

Quantas vezes fingimos invulnerabilidade, quando tudo o que o corpo pede é colo?

O Taoísmo ensina que a água é a mais suave e a mais forte das coisas — não enfrenta, contorna.

Não briga, dissolve. Talvez ser forte seja isso: deixar-se atravessar sem endurecer.

E então vem o refrão, rasgando o ar:

"Eu estou nas profundezas, me assista mergulhar, eu nunca vou para a terra firme."


Mergulhar... Quem nunca sentiu a urgência de afundar em si mesmo, de ir além das aparências, do automático, do personagem que a gente veste para sorrir enquanto por dentro chove?


We're far from the shallow now... Estamos longe do raso, canta ela.

E eu penso: talvez seja justamente isso que nos falta — a coragem de perder o chão para encontrar o centro. A superfície, com suas selfies editadas e felicidades performáticas, não protege ninguém.

O fundo sim. Lá, onde só a verdade alcança, ninguém nos fere.


Nietzsche dizia que "tornar-se quem se é" é a maior das tarefas. E Sartre completaria: "o homem está condenado a ser livre." Ou seja: não há manual, não há GPS. Só o silêncio das profundezas como bússola. No fim, Shallownão é só uma balada romântica.

É quase um tratado poético sobre autenticidade.


Gaga e Cooper, com sua entrega bruta, nos lembram que existe beleza em se despir da armadura, em dizer 'não sei", em viver sem certezas — mas com presença.

O mar já recuava, lambendo a areia com paciência.

O rapaz desligou o som e ficou ali, quieto, olhando o horizonte como quem também não queria voltar à terra firme.

Fiquei tentado a dizer algo.

Mas preferi o silêncio.

Talvez ele, como tantos de nós, estivesse enfim entendendo:

é longe do raso que mora a vida de verdade.


Idalo Spatz

  • há 2 dias
  • 2 min de leitura

O terreiro da vida, para Zeca Pagodinho, é um palco onde ele apenas deixa o corpo dançar no compasso do que vier.

"Deixa a vida me levar, vida leva eu" — canta ele, como quem entrega os remos ao destino, com um sorriso e uma gelada na mão.

Para muitos, soa como a receita da leveza: viver sem o peso das expectativas, sem o tormento de querer controlar tudo.

Mas será que essa filosofia do "deixa rolar" encontra eco nas profundezas do Taoísmo — e também na vigilância rigorosa da Filosofia?


No Taoísmo, sim.

Há uma ressonância quase perfeita com o espírito do refrão de Zeca.

O Tao — essa força invisível que permeia o mundo — não exige esforço, nem resistência.

Ele apenas é.

E a sabedoria, segundo Lao Tzu, está em fluir com ele, não contra.

É o princípio do wu wei— agir sem forçar, fazer sem interferir, mover-se como a água contorna a pedra: com paciência e sem luta.

O bambu que se curva ao vento sem quebrar...

O velho que sorri diante da mudança...

O silêncio que ensina mais do que mil discursos...


Tudo isso ecoa a mesma confiança que há na voz do Zeca:

quem disse que controlar tudo é sabedoria?

Mas aí vem a Filosofia — com seus olhos atentos e suas perguntas cortantes.

Ela não aceita tudo tão fácil.

Ela quer saber: e se, ao "deixar a vida nos levar", estivermos apenas à deriva?

E se, em nome da leveza, estivermos abrindo mão da liberdade?

Sartre, por exemplo, diria que estamos "condenados a ser livres".


Ou seja: mesmo quando não escolhemos, estamos escolhendo.

Não há neutralidade.

Nossa existência é construída por nossos atos — ou pela ausência deles.

Abdicar das rédeas pode ser também abdicar de si.

Até mesmo os estoicos, mestres da serenidade, fariam uma ressalva.

Sim, devemos aceitar o que não controlamos.

Mas não é porque o mar é indomável que vamos deitar no barco e dormir.

O que importa é como reagimos, o que cultivamos, o que pensamos.

Virtude, para eles, é remar com sabedoria — mesmo quando o vento sopra contra.


Então talvez o ponto não seja escolher entre fluir ou comandar.

A arte da vida está no discernimento.

Saber quando remar.

E saber quando é hora de largar os remos e confiar.

A vida é um rio.

Tem corredeiras e tem trechos mansos.


Zeca nos lembra que soltar o corpo é preciso.

Sartre nos avisa que viver é decidir.

E o Tao sussurra que o mais sábio é aquele que sabe escutar o ritmo das águas — e responder a ele com leveza e lucidez.


Idalo Spatz

  • há 5 dias
  • 2 min de leitura

O plenário ressoa — não com ideias, mas com a eloquência vazia dos discursos.

As cadeiras de veludo abrigam a pompa.

O ar, pesado de ambição e perfume caro, mal disfarça o odor persistente da hipocrisia.

Observo.

Detalhes.

Um bocejo disfarçado.

Um cochicho ensaiado.

Vozes que se elevam com estridência autoritária, enquanto outras — mais calmas, mais densas, mais justas — são abafadas antes mesmo de nascer.

É o cotidiano, sim.

Mas não o banal.

É o espetáculo da política: ensaiado, previsível, violento.


E o pano de fundo é o de sempre — a misoginia persistente, o machismo estrutural, o racismo entranhado nos interstícios do poder.


Minha voz, que busca ser autêntica, hesita.

Como escrever com leveza quando a invisibilidade pesa toneladas?

Como ser fluido, se a fluidez da injustiça é o

que escorre, livre e impune?


Vejo as mulheres. Poucas. Corajosas.

Mulheres pardas, negras, trans — que ousam cruzar o umbral desse templo de testosterona e privilégio.

Elas falam.

Argumentam com lucidez.

Apresentam propostas visionárias.

Mas seus gritos — ah, seus gritos — ecoam em corredores surdos.

Se perdem no labirinto da escuta seletiva.

São tratadas como exceção, como ruído.

Como erro.


E me pergunto, com a angústia que se enrosca na garganta:

o que isso nos revela sobre algo mais profundo?

A condição existencial dessas mulheres — das que não performam o padrão eurocêntrico e cisgênero — ainda é a de um "outro" a ser silenciado, controlado, apagado.

Busco respostas e me lembro de Lao Tsé, o mestre do Tao:

a água, que tudo contorna, que suaviza a pedra, que encontra o caminho.


Mas como contornar montanhas de preconceito fossilizado?

Judith Butler acende outra lanterna:

o gênero, afinal, é uma performance — e o plenário é palco.

Cada gesto, cada interrupção, cada risadinha condescendente repete o script de sempre.

E mesmo os que se dizem democratas ou progressistas operam sob a mesma lógica de exclusão ancestral.


A ironia — que tanto amo nas crônicas — aqui é uma faca.

A ironia de ver esses homens (e algumas mulheres) defenderem liberdade enquanto operam hierarquias.

Defenderem a moral enquanto sustentam a opressão.

Chamam de "debate" o que, na verdade, é um ritual de reafirmação de privilégios.

Comecei observando.

Termino com uma pergunta que me atravessa:

O que é preciso para que as pedras do preconceito se tornem areia, e o rio da igualdade possa, enfim, fluir sem barragens?

Idalo Spatz

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