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Padrão de rocha em camadas
  • 11 de jul.
  • 2 min de leitura

O sol já passava do meio-dia, mas no Arpoador a brisa insistia em soprar um alívio quase poético.

Ali, onde as ondas quebram promessas na areia e a Pedra vigia, silenciosa, tantas histórias humanas, pensei no velho "diabinho" que cada um de nós carrega.

Não aquele de chifres e tridente — mas o sussurro interno que nos tenta a desviar do plano traçado, da dieta prometida na segunda, da agenda meticulosamente rabiscada com boas intenções.

Como diria Vinícius, "a vida é a arte do encontro" — e talvez o mais difícil de todos seja o encontro com essa parte em nós que desafia nossos propósitos mais virtuosos.

Lembro de um dia assim: preguiçoso, lento, onde a vontade de ser “produtivo” era vencida pela sedução de simplesmente estar.

Ali, com os pés afundando na areia e o sal colando na pele, meu “diabinho” ria da lista de tarefas. Por um tempo, lutei contra ele — como se fosse um invasor a ser expulso.

Mas então, diante da vastidão azul, uma ideia me atravessou leve como brisa: e se a luta for o erro?

No Taoísmo, não há guerra entre luz e sombra — há complementaridade.

Yin e yang não se combatem: dançam.

A sombra só existe porque há luz. E vice-versa.

Espinosa, com sua ética cósmica, diria que tudo — até o impulso mais impuro — é expressão da mesma substância divina.

Nosso "diabinho" não é aberração: é parte.

É o “Eu Menor”, que desafia o “Eu Maior” e, por isso mesmo, o fortalece.

Nietzsche talvez brindasse com esse diabinho no bar da esquina.

Para ele, superação não era negação — mas canalização.

Aceitar o impulso não para se entregar a ele, mas para elevá-lo, dar-lhe forma, transformá-lo em dança ou filosofia.

Porque se o “Eu Maior” é a bússola, o “Eu Menor” é o vento.

E navegar, como bem sabia Kierkegaard, é lidar com essa tensão.

A angústia humana não é entre o bem e o mal — mas entre as versões possíveis de nós mesmos.

Respeitar o diabinho é não ceder a ele — mas compreendê-lo.

É reconhecer a correnteza sem se deixar afogar.

É rir, talvez, de sua esperteza — com aquele humor que só o carioca entende — e dizer: “tudo bem, mas quem escolhe sou eu.”

No Arpoador, onde o mar tem o ritmo de um coração cansado e sábio, percebi: ser digno não é ser perfeito — é ser inteiro.

Sim, às vezes a preguiça vence. A raiva pulsa. O impulso guia.

Mas crucificar essas partes não nos santifica — só nos divide.

 

Melhor observá-las com leveza, como quem reconhece num velho amigo seus defeitos incuráveis.

Tom Jobim já nos alertava: “É impossível ser feliz sozinho.”

Talvez, eu diria, também seja impossível ser inteiro negando partes de si.

E a vida, essa mistura de areia, suor e céu, segue — como o mar — entre avanços e recuos.

O segredo não é vencer sempre, mas continuar dançando, mesmo que às vezes fora do compasso.

 

                                         Idalo Spatz

 
  • 7 de jul.
  • 2 min de leitura

A brisa de outono em Ipanema nem sempre alcança os corações mais fechados.

Aqui, onde o mar beija a areia em ondas de poesia, há quem se endureça como mármore.

O amor, esse enrosco bom, às vezes tropeça num muro invisível, erguido por mãos que, tentando proteger, acabam por aprisionar.

A frieza emocional, disfarçada de força, silencia a melodia da intimidade e afasta o que mais se deseja: conexão.

Aprendemos cedo que o "eu" é rei. Que a autonomia é um tesouro.

E é.

Mas o que acontece quando esse “eu” vira uma fortaleza e o outro, um invasor?

A liberdade — tão exaltada pelos existencialistas — escorrega, e vira pretexto para a solidão.

Medo de se perder. Medo de se dissolver no “nós”.

Mas, como dizia o velho Hegel, é no espelho do outro que nos reconhecemos de verdade. Negar essa dança é como mirar o reflexo de um rio sem jamais tocar sua correnteza.

O Tao sussurra: a vida é fluxo.

A frieza, com sua rigidez, tenta conter o curso d’água.

É como querer congelar o Arpoador num bloco de gelo.

Mas o rio — sábio e livre — sempre encontra seu caminho.

E nós, se quisermos viver em harmonia, precisamos aprender a fluir com ele.

A vulnerabilidade, que tanto assusta, é justamente a força que derrete o gelo.

Aceitar o outro — em suas dobras, falhas e jeitos — é também aceitar as nossas.

Criticar demais, apontar dedos, manter-se na superfície —

é como tentar encher um copo furado.

O Tao nos diz: isso é desequilíbrio.

É afastamento da nossa verdadeira natureza.

Foucault talvez dissesse que a desvalorização do outro é uma forma sutil de poder:

diminui-se o outro para se sentir grande.

Mas, no fundo, isso ecoa o vazio de quem teme o espelho da intimidade.

Então, que tal deixar o mármore virar rio?

Que tal soltar a rigidez, permitir-se a correnteza das emoções?

Mergulhar no encontro, aceitar o outro em sua totalidade,

e fazer do medo não uma âncora — mas um convite a navegar?

Derreter o gelo é ato de coragem.

É entrega.

É a travessia rumo à plenitude que a vida, generosa, insiste em oferecer.

Afinal, por que ser pedra,

se a alma quer ser rio?

 

                                           Idalo Spatz

 
  • 3 de jul.
  • 3 min de leitura

Lá no Arpoador, quando o sol se despede em laranja melancólico e os pescadores voltam com o que o mar ofereceu — ou não às vezes ouve-se uma canção estrangeira escapando de um fone esquecido, como quem pede licença para entrar no silêncio dourado do entardecer.


Outro dia era Shallow, com Lady Gaga e Bradley Cooper, estourando os graves no celular de um rapaz sentado na pedra, com cara de quem tinha mais dúvidas do que planos.


Aquela voz rouca, carregada de alguma dor antiga, parecia conversar com o mar:

"Me diga uma coisa, garota, você está feliz neste mundo moderno? Ou você precisa de mais?"

E eu, que nem era a garota, me senti atravessado.

Vai ver todo mundo precisa de mais.

Ou de menos.

O mundo moderno — esse bicho apressado que exige produtividade até dos domingos — não combina com o ritmo da alma.


No Tao Te Ching, Laozi sussurra:

"A natureza não se apressa, e ainda assim tudo se realiza."

Mas a gente corre, se atropela, tenta preencher o vazio com barulho, imagem, qualquer coisa que brilhe. E mesmo assim, no meio do caos, ainda ansiamos por mudança.

Mas a mudança nem sempre é externa.

Muitas vezes, é só o desejo de viver de um jeito que faça sentido — e não sucesso.


O que Gaga canta é quase um koan zen, desses que não se resolve com lógica, mas com entrega: mergulhar fundo e não voltar à superfície.

Romper o espelho.

Abandonar o raso.

"Não é difícil manter toda essa energia hardcore?", pergunta ele.


O verso me bate como uma maré mais forte.

Quantas vezes fingimos invulnerabilidade, quando tudo o que o corpo pede é colo?

O Taoísmo ensina que a água é a mais suave e a mais forte das coisas — não enfrenta, contorna.

Não briga, dissolve. Talvez ser forte seja isso: deixar-se atravessar sem endurecer.

E então vem o refrão, rasgando o ar:

"Eu estou nas profundezas, me assista mergulhar, eu nunca vou para a terra firme."


Mergulhar... Quem nunca sentiu a urgência de afundar em si mesmo, de ir além das aparências, do automático, do personagem que a gente veste para sorrir enquanto por dentro chove?


We're far from the shallow now... Estamos longe do raso, canta ela.

E eu penso: talvez seja justamente isso que nos falta — a coragem de perder o chão para encontrar o centro. A superfície, com suas selfies editadas e felicidades performáticas, não protege ninguém.

O fundo sim. Lá, onde só a verdade alcança, ninguém nos fere.


Nietzsche dizia que "tornar-se quem se é" é a maior das tarefas. E Sartre completaria: "o homem está condenado a ser livre." Ou seja: não há manual, não há GPS. Só o silêncio das profundezas como bússola. No fim, Shallownão é só uma balada romântica.

É quase um tratado poético sobre autenticidade.


Gaga e Cooper, com sua entrega bruta, nos lembram que existe beleza em se despir da armadura, em dizer 'não sei", em viver sem certezas — mas com presença.

O mar já recuava, lambendo a areia com paciência.

O rapaz desligou o som e ficou ali, quieto, olhando o horizonte como quem também não queria voltar à terra firme.

Fiquei tentado a dizer algo.

Mas preferi o silêncio.

Talvez ele, como tantos de nós, estivesse enfim entendendo:

é longe do raso que mora a vida de verdade.


Idalo Spatz

 

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