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Diabinho

O sol já passava do meio-dia, mas no Arpoador a brisa insistia em soprar um alívio quase poético.

Ali, onde as ondas quebram promessas na areia e a Pedra vigia, silenciosa, tantas histórias humanas, pensei no velho "diabinho" que cada um de nós carrega.

Não aquele de chifres e tridente — mas o sussurro interno que nos tenta a desviar do plano traçado, da dieta prometida na segunda, da agenda meticulosamente rabiscada com boas intenções.

Como diria Vinícius, "a vida é a arte do encontro" — e talvez o mais difícil de todos seja o encontro com essa parte em nós que desafia nossos propósitos mais virtuosos.

Lembro de um dia assim: preguiçoso, lento, onde a vontade de ser “produtivo” era vencida pela sedução de simplesmente estar.

Ali, com os pés afundando na areia e o sal colando na pele, meu “diabinho” ria da lista de tarefas. Por um tempo, lutei contra ele — como se fosse um invasor a ser expulso.

Mas então, diante da vastidão azul, uma ideia me atravessou leve como brisa: e se a luta for o erro?

No Taoísmo, não há guerra entre luz e sombra — há complementaridade.

Yin e yang não se combatem: dançam.

A sombra só existe porque há luz. E vice-versa.

Espinosa, com sua ética cósmica, diria que tudo — até o impulso mais impuro — é expressão da mesma substância divina.

Nosso "diabinho" não é aberração: é parte.

É o “Eu Menor”, que desafia o “Eu Maior” e, por isso mesmo, o fortalece.

Nietzsche talvez brindasse com esse diabinho no bar da esquina.

Para ele, superação não era negação — mas canalização.

Aceitar o impulso não para se entregar a ele, mas para elevá-lo, dar-lhe forma, transformá-lo em dança ou filosofia.

Porque se o “Eu Maior” é a bússola, o “Eu Menor” é o vento.

E navegar, como bem sabia Kierkegaard, é lidar com essa tensão.

A angústia humana não é entre o bem e o mal — mas entre as versões possíveis de nós mesmos.

Respeitar o diabinho é não ceder a ele — mas compreendê-lo.

É reconhecer a correnteza sem se deixar afogar.

É rir, talvez, de sua esperteza — com aquele humor que só o carioca entende — e dizer: “tudo bem, mas quem escolhe sou eu.”

No Arpoador, onde o mar tem o ritmo de um coração cansado e sábio, percebi: ser digno não é ser perfeito — é ser inteiro.

Sim, às vezes a preguiça vence. A raiva pulsa. O impulso guia.

Mas crucificar essas partes não nos santifica — só nos divide.

 

Melhor observá-las com leveza, como quem reconhece num velho amigo seus defeitos incuráveis.

Tom Jobim já nos alertava: “É impossível ser feliz sozinho.”

Talvez, eu diria, também seja impossível ser inteiro negando partes de si.

E a vida, essa mistura de areia, suor e céu, segue — como o mar — entre avanços e recuos.

O segredo não é vencer sempre, mas continuar dançando, mesmo que às vezes fora do compasso.

 

                                         Idalo Spatz

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