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Padrão de rocha em camadas
  • 28 de jun.
  • 2 min de leitura

A senhora do 301 comprou um bebê reborn.

Mas não desses bonecos que apenas parecem reais — ela escolheu um que vem com certidão de nascimento, enxoval completo, nome bordado em fita rosa.

Passeia com ele no carrinho pelos corredores do prédio, cumprimenta os vizinhos em nome da "pequena Sofia" e, se você vacilar, conta da cólica que a fez passar a noite em claro.


A gente sorri, entre o constrangido e o compassivo.

A pequena Sofia é a âncora dela — a razão para levantar da cama, para preencher os dias que escorriam mudos, desde que os filhos cresceram e os netos nunca vieram.


No 202, mora o doutor Carlos — aposentado, viúvo, vigilante.

Dedica suas tardes a combater a "ameaça vermelha" que, segundo ele, corrói o país.

Digita com fúria nos grupos de WhatsApp,

compartilha vídeos, opina alto no elevador.

Seu mundo virou trincheira: preto e branco, certo e errado, nós e eles.

Nesse embate infindável, encontra um propósito — um exército, uma guerra, uma causa para continuar.


No 404, está dona Márcia, que faz da vida alheia sua especialidade.

Sabe quem se separou, quem está endividado, quem pintou o cabelo de azul.

A fofoca, para ela, não é maldade — é informação.


É assim que se sente parte da malha invisível do prédio.

Ao costurar os fatos alheios, tenta remendar o próprio vazio.

É quase uma ciência: quanto mais se inteira dos outros, menos precisa encarar o próprio espelho.

O Taoísmo nos fala do vazio criativo — o Wu Wei, a potência do não-fazer.

O sábio taoista não preenche: ele permite.

Não força: flui.

Há beleza na pausa, na abertura, na ausência de esforço.


Mas nós, ocidentais cronicamente inquietos, temos horror ao silêncio.

Corremos para ocupar.

Inventamos rotinas, causas, distrações — qualquer coisa para não ouvir o eco que vem de dentro.

Espinosa nos diria que essa ânsia por preencher é nossa potência tentando se exercer — mas, às vezes, canalizada por afetos tristes: medo, inveja, ressentimento.

Buscamos objetos que nos deem forma: o bebê de silicone, a ideologia fervorosa, os bastidores do 804.


É a tentativa de sentir-se vivo, mesmo que por cópia.

Mas, para Espinosa, a liberdade nasce quando deixamos de ser meros efeitos. Quando compreendemos as causas que nos

movem — e, assim, nos tornamos causa de nós mesmos.


A senhora do 301 é movida pela necessidade de maternar.

O doutor do 202, pela necessidade de combater.

A vizinha do 404, pela necessidade de pertencimento.

Todas compreensíveis.

Todas humanas.

Mas todas, também, coleiras sutis que disfarçam o medo de parar.

Medo de simplesmente ser.


A crônica talvez seja isso: uma tentativa de escutar o vazio sem pressa.

De nomear o que não tem forma, mas nos molda.

De acompanhar, com gentileza, aqueles que — como nós — tateiam no escuro à procura de sentido.

E talvez, só talvez, o verdadeiro gesto de liberdade não seja ocupar... mas desocupar.

Soltar a coleira.

E, por fim, respirar o silêncio.

Idalo Spatz


  • 27 de jun.
  • 2 min de leitura

Na beira do Arpoador, entre um gole de mate e o vaivém das ondas, vi uma mulher olhando fixamente o celular.

A brisa soprava suave, os surfistas flutuavam como garças no horizonte, e ela, imóvel, esperava — não o mar, não o pôr do sol, mas uma resposta.

Talvez um emoji, uma frase vaga, uma gota de afeto.

É curioso como aceitamos migalhas quando acreditamos que estamos com fome.


Nietzsche dizia que "a maior parte da humanidade prefere crer em ilusões agradáveis do que encarar verdades amargas". E não há ilusão mais sedutora do que a de que o pouco que nos dão é o suficiente, desde que nos deem alguma coisa.


Mas o que são essas migalhas senão pedaços frios de um banquete emocional que nunca chega?

A filosofia nos dá as lentes para observar esse cenário com mais clareza.

Os estóicos — sábios como Epicteto ou Sêneca — ensinavam que a fonte da nossa dor está no apego ao que não controlamos. Esperar que o outro nos sirva amor como se estivéssemos num restaurante emocional é a receita perfeita para a frustração.


Já os existencialistas — Kierkegaard, Beauvoir, Camus — apontavam para algo ainda mais inquietante: somos responsáveis por aceitar o que nos fazem. Cada escolha é uma assinatura no contrato da nossa própria narrativa.

Quando aceitamos migalhas, não é só porque o outro nos dá pouco — é também porque não acreditamos que merecemos o banquete.


E o Tao?

Ah, o Tao... Ele sussurra com o vento e não

precisa provar nada. O Taoísmo, com sua poética simplicidade, nos lembra que o rio não mendiga por afluentes: ele flui. WuWei — agir sem forçar, amar sem prender, doar sem contar.

Amar de verdade é como caminhar pela areia: leve, desapegado, mas presente.

Não se espera o amor, vivese o amor.


Talvez por isso Vinícius tenha dito que "o amor é eterno enquanto dura" — porque ele é como a maré: não se prende, apenas vem e vai.


E se ao invés de pedir migalhas, sentássemos à mesa conosco? Epicuro já nos convidava para isso: o prazer genuíno está na amizade, na lucidez e na moderação.

É na sabedoria que nos tornamos fartos — não no outro.


A mulher ainda olhava o celular quando o sol mergulhou no mar, e pela primeira vez ela levantou os olhos. Sorriu, tímida, como quem percebe, enfim, que o céu é bem mais bonito que as notificações. Era um começo. Pequeno, mas inteiro. Idalo Spatz

  • 26 de jun.
  • 2 min de leitura

No alto do Vidigal, uma moça se equilibra para tirar a foto perfeita. Atrás dela, o vazio. À frente, o celular. Nada entre um e outro. Nada além de aplausos virtuais que ela ainda não recebeu, mas já antecipa. Ela sorri, mas seu corpo está rígido. Não há contemplação naquele gesto, só tensão. É o momento exato em que a aventura se desfaz em performance.


Dias depois, outra manchete: mais uma tragédia em trilha "paradisíaca". Alguém caiu, alguém sumiu, alguém não voltou. Um "passeio radical" que terminou em silêncio.

E me pergunto: desde quando buscar o sublime virou sinônimo de flertar com o limite?

Não se trata de coragem. Coragem é mergulhar dentro, não se pendurar fora.

Nietzsche dizia que "aquele que luta com monstros deve cuidar para não se tornar

um". Mas às vezes, o monstro mora no espelho com filtro de paisagem.

E é alimentado a cada curtida.

O Taoísmo nos diria que quem busca o extraordinário fora, esquece o extraordinário que já habita o agora. Que quem força a natureza, será por ela engolido — não por castigo, mas por descompasso.

Existe uma diferença sutil entre aventura e compulsão por transcendência. Quando subir o morro vira obrigação, e não escolha. Quando o risco é anestésico para um tédio existencial. Quando o corpo, frágil e urbano, se veste de guerreiro apenas para registrar que "venceu a montanha" — mesmo que tenha perdido a si mesmo no caminho.

Espinosa falava que somos movidos pelo desejo de perseverar no ser. Mas há quem confunda perseverança com exibição. Há quem vá à floresta não para ouvir a mata, mas para vencer o silêncio que o próprio peito já não suporta.

Kierkegaard nos alertava: o desespero moderno é o da fuga de si. E a trilha, o cume, a escalada — tudo isso pode ser beleza ou fuga. Caminho ou escudo.

A trilha mais perigosa é a da expectativa.

A de ter que viver experiências impactantes, intensas, radicais — como se a vida só valesse se testasse seus próprios limites. Mas o Tao ensina que a grandeza está no meio. No caminho do meio. Na trilha que respeita a topografia do corpo e a topografia da alma. Tom Jobim, que amava as pedras e os rios, dizia:

"É impossível ser feliz sozinho..." E eu diria: também é impossível ser feliz se você está sempre competindo com o abismo — por aprovação.

No Arpoador, a maré sobe mansa. A jovem que caminha ali não precisa escalar nada para se sentir viva. Ela sente o vento. Isso basta.

O verdadeiro radicalismo, talvez, seja não ter pressa.

É sentar-se na pedra e ver o sol descer.

Sem foto.

Sem legenda.

Sem prova.

A aventura mais bonita é aquela que nos reconcilia com o corpo.

Que não exige do mundo um espetáculo — mas que devolve ao mundo nossa escuta.

No fim do dia, o mar engole mais uma trilha.

A montanha permanece.

O vento sussurra.

E quem escuta, volta inteiro.

Idalo Spatz

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