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Padrão de rocha em camadas
  • 2 de ago.
  • 2 min de leitura

O céu, dividido entre o azul resistente e o vermelho da inquietação, parecia traduzir o espírito do nosso tempo: bonito, mas conflituoso. No calçadão de Ipanema, ouvi um grupo discutindo política com o mesmo fervor com que discutiriam o VAR numa final de campeonato. Entre goles de "mate" e argumentos inflados, um deles soltou:

— O problema é que ninguém mais acredita em sistema nenhum. Nem em esquerda, nem em direita...

E eu, velho cronista de brisas e contradições, pensei: talvez isso seja mesmo um sinal de lucidez.

Não há utopia que resista ao olhar nu de quem já viu de perto o preço dos extremos. “Todo pensamento totalitário é, antes de tudo, uma tentativa de matar a dúvida”, diria Camus, que tão bem compreendia a tragédia das certezas absolutas. Os extremos — de qualquer lado — não se encontram no ponto médio, mas na vontade de calar o outro.

 

Esquerda e direita, quando endurecem, espelham-se: ambas erguem muros, alimentam ressentimentos e sonham com a eternidade no poder.

A democracia, por mais imperfeita que seja, é o regime do incômodo. Ela não promete o paraíso, mas garante o direito de sonhar — e de mudar. Como ensinava Espinosa, a liberdade não é ausência de limites, mas a possibilidade de transformar o necessário em escolha. E nisso, alternância de poder é mais que um detalhe: é o próprio respiro da vida pública.

De um lado, a fé cega em doutrinas que prometem igualdade eterna, mas produzem escassez e censura. De outro, o mito da liberdade total de mercado, que vira abandono disfarçado de mérito. O caminho talvez esteja no meio-fio: um Estado que cuida, uma economia que pulsa, uma sociedade que pensa. Saúde, educação, infraestrutura básica — e liberdade vigiada

 

não por tiranos, mas por instituições sólidas e transparentes. O resto? O resto é religião e futebol, como dizia Nelson Rodrigues.

Nietzsche, com sua ironia de profeta cansado, diria que o problema não é a falta de fé, mas o excesso de deuses — ideológicos, partidários, financeiros. Todos exigindo sacrifícios em nome de um futuro que nunca chega. Kierkegaard, por sua vez, lembraria que é no salto entre a angústia e a escolha que a existência se afirma. Por isso, talvez, a democracia seja tão humana: vive de erros, acertos e da constante arte de recomeçar.

A brisa do mar toca o rosto como um lembrete: o tempo exige adaptação. E só muda quem aceita o fluxo. O Tao nos ensina que nada é mais forte que a água: ela contorna, penetra, dissolve. Talvez seja isso que nossa política precise — menos muralhas, mais movimento.

Ao longe, o som de um gol explode no rádio

 

do quiosque. Um senhor ri sozinho, camisa do Flamengo no peito, olhos no horizonte.

Porque, no fim, talvez tudo se resuma nisso: a esperança que vibra mesmo quando o time perde.

A democracia, afinal, é esse jogo suado onde ninguém ganha sozinho — e todo dia é final de campeonato.

 

                                           Idalo Spatz

 
  • 28 de jul.
  • 3 min de leitura

No Arpoador, ao cair da tarde, há um instante em que o mundo parece parar. O sol se espreguiça nas águas como se hesitasse em partir, e o vento sussurra segredos nas folhas dos amendoeiros.

É nesse breve hiato entre o que foi e o que ainda não chegou que muitas verdades decidem aparecer — não como respostas, mas como brisas.

Drão, certa vez, sentiu isso. Estava sentada sob a mangueira do quintal da infância, um grão de arroz na palma da mão e a alma no limiar entre a dor e o entendimento.

A canção de Gil ressoava baixa, como um mantra antigo:

“O amor da gente é como um grão / uma semente de ilusão…”

Ilusão — não como falsidade, mas como véu. Um tecido tênue que suaviza o real e protege o coração. Era isso que Drão compreendia aos poucos: o amor vivido, ainda que ausente, deixava vestígios. Como a maré que leva o corpo mas deixa o sal.

A ausência — dizia o Tao — não é oposta à presença, é sua dobra.

Nietzsche talvez chamasse isso de amor-fati: amar o destino tal como é, mesmo quando ele despedaça nossos mapas. Kierkegaard diria que é preciso coragem estética para viver a dor sem anestesia, e fé para atravessá-la sem promessa de recompensa. Drão, sem saber, vivia tudo isso. Olhava para o grão e via o fim. Mas o fim — ensinava Gil — é também semente.

“Tem que morrer pra germinar…”

E ali estava o segredo, nu, como o corpo do pão: o amor só renasce quando aceita sua morte.

O grão precisa apodrecer na escuridão da terra para que algo novo possa brotar.

É no abandono do controle que o Tao opera. Não empurra, não segura — apenas flui.

E a dor, quando aceita, vira estrada.

Camus já escrevera: “no meio do inverno, descobri em mim um verão invencível”. Drão descobria, no centro do luto, uma paz que não vinha da explicação, mas da rendição. A dor era real, mas não precisava ser residência. Podia ser travessia. Como as ondas de Ipanema que se quebram para recomeçar.

As crianças corriam, sujas de fruta e de riso. E naquilo — nos pés descalços, na gargalhada impune, no agora sem culpa — o Tao mostrava sua face mais pura. Espinosa diria que a liberdade está em seguir a própria natureza. As crianças sabiam disso intuitivamente. Drão reaprendia.

“Os meninos são todos sãos…”, cantava Gil.

Era uma canção, sim. Mas também um koan — aqueles enigmas zen que não se resolvem com lógica, apenas se dissolvem na consciência desperta. O amor, dizia a canção, vira trigo, depois pão. Depois fome de novo. Um ciclo. Não há perda, há metamorfose.

Merleau-Ponty chamaria isso de entrelaçamento dos tempos — passado, presente e futuro se tocando num mesmo gesto. E Sorin Cerin sussurraria que só o amor que renuncia ao domínio permanece puro.

O sol, agora baixo, tingia o céu com aquele tom exato entre o dourado e a saudade.

Drão se levantou.

Com os pés firmes na terra, os olhos fitavam um além que não era longe, era dentro.

Sabia: o amor que existira entre ela e aquele homem agora pertencia ao mundo.

Era memória, era aprendizado, era parte da seiva das coisas.

Preta é fruto e presença ausente desse amor.

 

                                         Idalo Spatz

 
  • 24 de jul.
  • 2 min de leitura

No Arpoador, o fim de tarde parecia suspenso. O sol descia devagar, como um segredo sussurrado, tingindo o céu de vinho e silêncio. Um rapaz dedilhava um violão antigo. E, como se o universo tivesse dado um passo para trás, ouvi Cartola:

"Ainda é cedo, amor... mal começaste a conhecer a vida."

Ali, naquela curva de luz entre céu e mar, compreendi: não era apenas uma canção.

Era filosofia em forma de samba. Era o Tao soprando pelos becos da alma.

Cartola não escreveu apenas sobre um amor frustrado. Escreveu sobre o tempo. Sobre esse moinho invisível que gira o mundo — e nós com ele. Sob o olhar do Tao, esse moinho não é tragédia, é fluxo: Yin e Yang em sua dança constante, moendo certezas, lapidando o ego, destilando a essência.

Na canção, há uma advertência — doce, mas firme. O tempo "vai te destruir", diz ele.


Não por crueldade, mas por natureza. Lao-Tsé já sabia:

"Nada é mais maleável que a água, mas nada resiste a ela."

Cartola também. Sabia que o orgulho juvenil é espuma. E que amar é, às vezes, saber partir.

Nietzsche talvez sorrisse ali, entre a areia e o horizonte. Não por ironia, mas por reconhecimento.


O moinho é também o Eterno Retorno — aquilo que gira, gira, e retorna. Cada dor, cada escolha, cada amor moído no tempo reaparece como possibilidade.

O que vivemos volta. E, mesmo assim, tudo passa.

Heráclito nos lembrou que não se entra duas vezes no mesmo rio. Cartola mostra que o rio, além de correr, esculpe. Molda. Transforma. E quando nos damos conta, o amor já não é o mesmo.

E nós, tampouco.

Camus, o poeta do absurdo, encontraria em Cartola um irmão silencioso. Ambos conheceram o moinho. Ambos sabiam da ausência de sentido absoluto — mas também da beleza de enfrentá-la. Camus nos oferece a revolta serena de Sísifo. Cartola, a melodia triste que abraça o destino. Ambos escolhem a ternura, mesmo diante do inevitável.

Espinosa dizia que a liberdade nasce da compreensão da necessidade. Cartola compreendia. Sabia que o tempo não é vilão, mas movimento. Que só ama de verdade quem ama mesmo sabendo que tudo se desfaz.

Do alto do Arpoador, com a brisa do mar e o murmúrio das ondas que nunca são as mesmas, entendi: o moinho não é inimigo — é mestre. Ensina que viver é deixar-se moer. Que resistir ao fluxo é sofrer. Que Wu Wei — o agir sem forçar do Tao — é ouvir Cartola e compreender que, às vezes, amar é não impedir que o outro vá.

O mundo gira. E com ele, nós. O orgulho cai. A juventude se esvai. As ilusões se desmancham como espuma na pedra.


Mas se ouvirmos com atenção, o que fica é a música. O Tao em tom menor. Cartola, com seus olhos de quem já entendeu o segredo:

"Presta atenção, querida, embora eu saiba que estás resolvida...

O mundo é um moinho. Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos,

vai reduzir as ilusões a pó..."

E, mesmo assim, amar.

 

                                          Idalo Spatz

 

 

 

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