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O Mundo e o Moinho

No Arpoador, o fim de tarde parecia suspenso. O sol descia devagar, como um segredo sussurrado, tingindo o céu de vinho e silêncio. Um rapaz dedilhava um violão antigo. E, como se o universo tivesse dado um passo para trás, ouvi Cartola:

"Ainda é cedo, amor... mal começaste a conhecer a vida."

Ali, naquela curva de luz entre céu e mar, compreendi: não era apenas uma canção.

Era filosofia em forma de samba. Era o Tao soprando pelos becos da alma.

Cartola não escreveu apenas sobre um amor frustrado. Escreveu sobre o tempo. Sobre esse moinho invisível que gira o mundo — e nós com ele. Sob o olhar do Tao, esse moinho não é tragédia, é fluxo: Yin e Yang em sua dança constante, moendo certezas, lapidando o ego, destilando a essência.

Na canção, há uma advertência — doce, mas firme. O tempo "vai te destruir", diz ele.


Não por crueldade, mas por natureza. Lao-Tsé já sabia:

"Nada é mais maleável que a água, mas nada resiste a ela."

Cartola também. Sabia que o orgulho juvenil é espuma. E que amar é, às vezes, saber partir.

Nietzsche talvez sorrisse ali, entre a areia e o horizonte. Não por ironia, mas por reconhecimento.


O moinho é também o Eterno Retorno — aquilo que gira, gira, e retorna. Cada dor, cada escolha, cada amor moído no tempo reaparece como possibilidade.

O que vivemos volta. E, mesmo assim, tudo passa.

Heráclito nos lembrou que não se entra duas vezes no mesmo rio. Cartola mostra que o rio, além de correr, esculpe. Molda. Transforma. E quando nos damos conta, o amor já não é o mesmo.

E nós, tampouco.

Camus, o poeta do absurdo, encontraria em Cartola um irmão silencioso. Ambos conheceram o moinho. Ambos sabiam da ausência de sentido absoluto — mas também da beleza de enfrentá-la. Camus nos oferece a revolta serena de Sísifo. Cartola, a melodia triste que abraça o destino. Ambos escolhem a ternura, mesmo diante do inevitável.

Espinosa dizia que a liberdade nasce da compreensão da necessidade. Cartola compreendia. Sabia que o tempo não é vilão, mas movimento. Que só ama de verdade quem ama mesmo sabendo que tudo se desfaz.

Do alto do Arpoador, com a brisa do mar e o murmúrio das ondas que nunca são as mesmas, entendi: o moinho não é inimigo — é mestre. Ensina que viver é deixar-se moer. Que resistir ao fluxo é sofrer. Que Wu Wei — o agir sem forçar do Tao — é ouvir Cartola e compreender que, às vezes, amar é não impedir que o outro vá.

O mundo gira. E com ele, nós. O orgulho cai. A juventude se esvai. As ilusões se desmancham como espuma na pedra.


Mas se ouvirmos com atenção, o que fica é a música. O Tao em tom menor. Cartola, com seus olhos de quem já entendeu o segredo:

"Presta atenção, querida, embora eu saiba que estás resolvida...

O mundo é um moinho. Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos,

vai reduzir as ilusões a pó..."

E, mesmo assim, amar.

 

                                          Idalo Spatz

 

 

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