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Drão O amor da gente

No Arpoador, ao cair da tarde, há um instante em que o mundo parece parar. O sol se espreguiça nas águas como se hesitasse em partir, e o vento sussurra segredos nas folhas dos amendoeiros.

É nesse breve hiato entre o que foi e o que ainda não chegou que muitas verdades decidem aparecer — não como respostas, mas como brisas.

Drão, certa vez, sentiu isso. Estava sentada sob a mangueira do quintal da infância, um grão de arroz na palma da mão e a alma no limiar entre a dor e o entendimento.

A canção de Gil ressoava baixa, como um mantra antigo:

“O amor da gente é como um grão / uma semente de ilusão…”

Ilusão — não como falsidade, mas como véu. Um tecido tênue que suaviza o real e protege o coração. Era isso que Drão compreendia aos poucos: o amor vivido, ainda que ausente, deixava vestígios. Como a maré que leva o corpo mas deixa o sal.

A ausência — dizia o Tao — não é oposta à presença, é sua dobra.

Nietzsche talvez chamasse isso de amor-fati: amar o destino tal como é, mesmo quando ele despedaça nossos mapas. Kierkegaard diria que é preciso coragem estética para viver a dor sem anestesia, e fé para atravessá-la sem promessa de recompensa. Drão, sem saber, vivia tudo isso. Olhava para o grão e via o fim. Mas o fim — ensinava Gil — é também semente.

“Tem que morrer pra germinar…”

E ali estava o segredo, nu, como o corpo do pão: o amor só renasce quando aceita sua morte.

O grão precisa apodrecer na escuridão da terra para que algo novo possa brotar.

É no abandono do controle que o Tao opera. Não empurra, não segura — apenas flui.

E a dor, quando aceita, vira estrada.

Camus já escrevera: “no meio do inverno, descobri em mim um verão invencível”. Drão descobria, no centro do luto, uma paz que não vinha da explicação, mas da rendição. A dor era real, mas não precisava ser residência. Podia ser travessia. Como as ondas de Ipanema que se quebram para recomeçar.

As crianças corriam, sujas de fruta e de riso. E naquilo — nos pés descalços, na gargalhada impune, no agora sem culpa — o Tao mostrava sua face mais pura. Espinosa diria que a liberdade está em seguir a própria natureza. As crianças sabiam disso intuitivamente. Drão reaprendia.

“Os meninos são todos sãos…”, cantava Gil.

Era uma canção, sim. Mas também um koan — aqueles enigmas zen que não se resolvem com lógica, apenas se dissolvem na consciência desperta. O amor, dizia a canção, vira trigo, depois pão. Depois fome de novo. Um ciclo. Não há perda, há metamorfose.

Merleau-Ponty chamaria isso de entrelaçamento dos tempos — passado, presente e futuro se tocando num mesmo gesto. E Sorin Cerin sussurraria que só o amor que renuncia ao domínio permanece puro.

O sol, agora baixo, tingia o céu com aquele tom exato entre o dourado e a saudade.

Drão se levantou.

Com os pés firmes na terra, os olhos fitavam um além que não era longe, era dentro.

Sabia: o amor que existira entre ela e aquele homem agora pertencia ao mundo.

Era memória, era aprendizado, era parte da seiva das coisas.

Preta é fruto e presença ausente desse amor.

 

                                         Idalo Spatz

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