Drão O amor da gente
- Idalo Spatz
- 28 de jul.
- 3 min de leitura
No Arpoador, ao cair da tarde, há um instante em que o mundo parece parar. O sol se espreguiça nas águas como se hesitasse em partir, e o vento sussurra segredos nas folhas dos amendoeiros.
É nesse breve hiato entre o que foi e o que ainda não chegou que muitas verdades decidem aparecer — não como respostas, mas como brisas.
Drão, certa vez, sentiu isso. Estava sentada sob a mangueira do quintal da infância, um grão de arroz na palma da mão e a alma no limiar entre a dor e o entendimento.
A canção de Gil ressoava baixa, como um mantra antigo:
“O amor da gente é como um grão / uma semente de ilusão…”
Ilusão — não como falsidade, mas como véu. Um tecido tênue que suaviza o real e protege o coração. Era isso que Drão compreendia aos poucos: o amor vivido, ainda que ausente, deixava vestígios. Como a maré que leva o corpo mas deixa o sal.
A ausência — dizia o Tao — não é oposta à presença, é sua dobra.
Nietzsche talvez chamasse isso de amor-fati: amar o destino tal como é, mesmo quando ele despedaça nossos mapas. Kierkegaard diria que é preciso coragem estética para viver a dor sem anestesia, e fé para atravessá-la sem promessa de recompensa. Drão, sem saber, vivia tudo isso. Olhava para o grão e via o fim. Mas o fim — ensinava Gil — é também semente.
“Tem que morrer pra germinar…”
E ali estava o segredo, nu, como o corpo do pão: o amor só renasce quando aceita sua morte.
O grão precisa apodrecer na escuridão da terra para que algo novo possa brotar.
É no abandono do controle que o Tao opera. Não empurra, não segura — apenas flui.
E a dor, quando aceita, vira estrada.
Camus já escrevera: “no meio do inverno, descobri em mim um verão invencível”. Drão descobria, no centro do luto, uma paz que não vinha da explicação, mas da rendição. A dor era real, mas não precisava ser residência. Podia ser travessia. Como as ondas de Ipanema que se quebram para recomeçar.
As crianças corriam, sujas de fruta e de riso. E naquilo — nos pés descalços, na gargalhada impune, no agora sem culpa — o Tao mostrava sua face mais pura. Espinosa diria que a liberdade está em seguir a própria natureza. As crianças sabiam disso intuitivamente. Drão reaprendia.
“Os meninos são todos sãos…”, cantava Gil.
Era uma canção, sim. Mas também um koan — aqueles enigmas zen que não se resolvem com lógica, apenas se dissolvem na consciência desperta. O amor, dizia a canção, vira trigo, depois pão. Depois fome de novo. Um ciclo. Não há perda, há metamorfose.
Merleau-Ponty chamaria isso de entrelaçamento dos tempos — passado, presente e futuro se tocando num mesmo gesto. E Sorin Cerin sussurraria que só o amor que renuncia ao domínio permanece puro.
O sol, agora baixo, tingia o céu com aquele tom exato entre o dourado e a saudade.
Drão se levantou.
Com os pés firmes na terra, os olhos fitavam um além que não era longe, era dentro.
Sabia: o amor que existira entre ela e aquele homem agora pertencia ao mundo.
Era memória, era aprendizado, era parte da seiva das coisas.
Preta é fruto e presença ausente desse amor.
Idalo Spatz


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