- 11 de set.
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No Arpoador, fim de tarde.
As ondas quebram mansas, como se acariciassem as pedras antes de partir.
Ali, sentada com os pés descalços e a alma entreaberta, vejo uma jovem mulher — ou seria uma garotinha? — cantar baixinho um verso antigo:
"Eu só peço a Deus um pouco de malandragem..."
Fico ali, disfarçado de cronista, ouvindo seu sussurro que mistura prece e protesto.
O que seria essa tal “malandragem” que ela pede a Deus?
Não é malícia.
Não é esperteza vulgar.
É sobrevivência com doçura.
É um jeito leve de driblar o peso do mundo.
A canção de Cássia, feita de contradições, deambula entre o gesto infantil e a autonomia madura.
Entre a menina que reza nos cantos e a mulher que dirige seu próprio carro.
Entre o poema que nasce da dor e o pileque libertário de quem ainda sabe cantar.
Entre o amor idealizado que nunca se aprendeu a viver… e a lucidez bêbada de quem já não espera mais príncipe nenhum.
Nietzsche diria que amadurecer é recusar as ilusões que nos infantilizam — inclusive as do amor romântico.
E Kierkegaard lembraria: a angústia de existir é o preço da liberdade.
Mas é Espinosa quem sussurra mais fundo ao coração da crônica:
“Somos afeitos à perseverança no ser.”
Ou seja, mesmo sem saber amar, seguimos tentando.
A garota da música — como tantas de nós — não quer mais ser “boazinha”.
Ela quer o direito de errar, de viver sem pedir desculpas por existir.
Ela quer bobeiras, sim, mas das que libertam:
trocar uma planta de lugar, andar pelas ruas, tomar seu pileque em paz.
Na superfície, parece só uma música.
Mas se escutar direito, é um manifesto.
Uma filosofia da leveza, com sotaque carioca e alma poética.
O Tao, em sua sabedoria ancestral, diria que o sábio é aquele que age sem forçar, vive sem se endurecer, ama sem prender.
E talvez seja isso que essa mulher-menina busca:
não o amor romântico, não a felicidade de manual — mas a fluidez de quem reconhece que viver é dançar com o não-saber.
Ela não aprendeu a amar.
Mas também não desaprendeu a sonhar.
E nesse vão entre a infância e o mundo, entre a poesia e a realidade, talvez more o único tipo de malandragem que vale a pena:
a de seguir inteira, mesmo aos pedaços.
Na pedra do Arpoador, o sol se despede.
Ela canta mais uma vez.
E eu escrevo — como quem tenta, em vão, aprender a amar com palavras.
Idalo Spatz
