Quem é você na fila do pão
- Idalo Spatz
- 4 de set.
- 2 min de leitura
No balcão de uma padaria da esquina, cada um espera o seu pedaço de vida embrulhado pra viagem. O balconista nem desconfia, mas o “pão francês” é apenas pretexto: o que se busca mesmo é um certo conforto invisível, uma pitada de pertencimento.
“Quem é você na fila do pão?” — a pergunta, tantas vezes dita em tom de ironia, guarda uma filosofia escondida. Não somos todos personagens numa cena banal, disputando não só o pão, mas também atenção, desejo, carinho, segurança?
Talvez os relacionamentos se pareçam com essa fila.
Uns entram porque querem o cheiro quente da paixão recém-saída do forno; outros, porque precisam da segurança de sempre ter um pão na mesa; há ainda quem esteja ali só para passar o tempo, mastigando qualquer coisa para preencher o vazio.
Mas onde fica o amor, esse raro fermento que dá sentido a tudo?
Estaria ele acima dos interesses ou seria apenas mais um recheio no sanduíche da vida?
Espinosa nos lembraria que todo encontro é força que aumenta ou diminui nossa potência de existir. Nietzsche, por sua vez, nos provocaria: não será o amor muitas vezes um disfarce da vontade de poder — de controlar, de segurar o outro para que não escape?
E, no entanto, o Tao nos sopra uma resposta mais leve: a água não disputa lugar na fila.
Ela apenas flui, contorna, cede, e assim vence. Talvez o segredo esteja aí: amar não como quem exige seu pão de direito, mas como quem compartilha a mesa e descobre que a fome pode ser menor quando o pão é partido em silêncio e cumplicidade.
No fundo, toda relação traz algo de “servidão voluntária”.
La Boétie nos alertava: não é a força bruta que sustenta o domínio, mas o consentimento silencioso. Assim também nos vínculos íntimos: quantas vezes aceitamos migalhas em troca da ilusão de companhia? Quantas vezes calamos desejos para não perder o lugar na fila?
Há quem se curve sem perceber, transformando amor em obediência, e companhia em cativeiro doce. A linha é tênue: entregar-se pode ser alimento; submeter-se, esvaziamento.
A diferença está em saber se o pão é partilhado ou se apenas um come enquanto o outro serve.
Há quem saia da padaria com as mãos cheias e o coração vazio.
E há quem, mesmo de bolso leve, volte para casa nutrido por um gesto simples:
o outro lhe guardou um pedaço.
O pôr do sol no Arpoador também é uma fila.
Turistas, locais, casais, solitários.
Todos aguardam pelo mesmo pão dourado que o céu nos serve sem cobrar nada.
Ali, não há balcão, não há senha — só a lembrança de que algumas coisas, as mais essenciais, não podem ser compradas nem calculadas.
E você?
Na fila do pão, no balcão do amor, o que realmente busca:
saciar a fome ou repartir o banquete?
Idalo Spatz


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