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Malandragem

No Arpoador, fim de tarde.

As ondas quebram mansas, como se acariciassem as pedras antes de partir.

Ali, sentada com os pés descalços e a alma entreaberta, vejo uma jovem mulher — ou seria uma garotinha? — cantar baixinho um verso antigo:

"Eu só peço a Deus um pouco de malandragem..."

Fico ali, disfarçado de cronista, ouvindo seu sussurro que mistura prece e protesto.

O que seria essa tal “malandragem” que ela pede a Deus?

Não é malícia.

Não é esperteza vulgar.

É sobrevivência com doçura.

É um jeito leve de driblar o peso do mundo.

A canção de Cássia, feita de contradições, deambula entre o gesto infantil e a autonomia madura.

Entre a menina que reza nos cantos e a mulher que dirige seu próprio carro.

 

Entre o poema que nasce da dor e o pileque libertário de quem ainda sabe cantar.

Entre o amor idealizado que nunca se aprendeu a viver… e a lucidez bêbada de quem já não espera mais príncipe nenhum.

Nietzsche diria que amadurecer é recusar as ilusões que nos infantilizam — inclusive as do amor romântico.

E Kierkegaard lembraria: a angústia de existir é o preço da liberdade.

Mas é Espinosa quem sussurra mais fundo ao coração da crônica:

“Somos afeitos à perseverança no ser.”

Ou seja, mesmo sem saber amar, seguimos tentando.

A garota da música — como tantas de nós — não quer mais ser “boazinha”.

Ela quer o direito de errar, de viver sem pedir desculpas por existir.

Ela quer bobeiras, sim, mas das que libertam:

trocar uma planta de lugar, andar pelas ruas, tomar seu pileque em paz.

 

Na superfície, parece só uma música.

Mas se escutar direito, é um manifesto.

Uma filosofia da leveza, com sotaque carioca e alma poética.

O Tao, em sua sabedoria ancestral, diria que o sábio é aquele que age sem forçar, vive sem se endurecer, ama sem prender.

E talvez seja isso que essa mulher-menina busca:

não o amor romântico, não a felicidade de manual — mas a fluidez de quem reconhece que viver é dançar com o não-saber.

Ela não aprendeu a amar.

Mas também não desaprendeu a sonhar.

E nesse vão entre a infância e o mundo, entre a poesia e a realidade, talvez more o único tipo de malandragem que vale a pena:

a de seguir inteira, mesmo aos pedaços.

Na pedra do Arpoador, o sol se despede.

Ela canta mais uma vez.

E eu escrevo — como quem tenta, em vão, aprender a amar com palavras.

 

                                         Idalo Spatz

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