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Vamos pedir piedade

Ainda era fim de tarde no Arpoador. O céu, preguiçoso, se despedia do sol com aquele tom de cobre que só o Rio conhece. Na areia, uma roda de violão desafinava versos antigos, enquanto o vento trazia fragmentos de uma melodia conhecida:

Vamos pedir piedade / Senhor, piedade / Pra essa gente careta e covarde…

Senti um arrepio. Não era só a música. Era o diagnóstico cru de um tempo que insiste em se repetir — como onda que volta, mesmo sabendo que vai quebrar na mesma pedra.

Olhei ao redor: corpos bronzeados, celulares em punho, sorrisos ensaiados para a câmera.

Mas por trás do filtro solar e dos filtros digitais, percebia-se a mesma fragilidade que Cazuza cantava.

Gente vagando pelo mundo derrotada —

não por guerras épicas, mas por pequenas capitulações diárias.

A alma pequena não nasce assim; ela vai se atrofiando como músculo que não se usa.

É o preço de viver remoendo problemas mínimos enquanto o mundo desaba em silêncio.

Espinosa diria que essa tristeza cotidiana é efeito da nossa impotência de agir. Vivemos presos a afetos passivos, esperando que algo externo venha redimir a nossa própria paralisia. Nietzsche talvez gargalhasse, apontando o dedo para a covardia das almas que esperam heróis enquanto fogem de si mesmas.

Enquanto isso, o Tao continua a fluir, indiferente às nossas neuroses. O rio não para para lamentar a pedra; ele a contorna. A natureza não pede piedade — dança com o inevitável.

Mas nós, humanos, teimosos, ficamos esperando que o mundo caiba no nosso sonho estreito, como quem quer engarrafar o vento.

Pra quem não sabe amar / Fica esperando alguém que caiba no seu sonho…

A frase ecoou como mantra invertido.

 Quantas vezes confundimos amor com encaixe? Com moldura? Com posse estética?

O amor verdadeiro, ensinava Fromm, é ato ativo, não espera passiva. Exige coragem — essa mesma coragem que falta aos “caretas e covardes” do refrão.

Na beira mar, uma senhora acendia incensos ao lado de jovens com latinhas e olhos marejados. Todos, de algum modo, eram “iguais em desgraça”. A chuva rala começava a cair, tímida, sobre a fogueira improvisada.

A piedade aqui não é caridade — é súplica filosófica.

É o reconhecimento de que estamos todos no mesmo barco furado, tentando remar com remos partidos. Pedi piedade também. Mas não para um Deus distante. Pedi piedade a nós mesmos — que tenhamos a grandeza de ver a própria pequenez sem cinismo, e a coragem de não permanecer nela.

O mar avançou um pouco mais. A roda de violão mudou de tom.

E no fundo, entre as ondas e o blues, senti que a crônica não era sobre “eles”, mas sobre “nós”.

 

                                   Idalo Spatz

 

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